ou palavra sem contexto

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

EU VI ELE, SIM, E DAÍ?!

Marcos Bagno
Professor Doutor da UnB

Pouco tempo atrás, comemorei nesta coluna a publicação da Gramática do Português Brasileiro, de Mário Perini. Agora é de toda justiça celebrar também o recente lançamento da Nova Gramática do Português Brasileiro, de Ataliba T. de Castilho, reconhecido internacionalmente como um dos mais importantes linguistas brasileiros contemporâneos. Além disso, também é preciso dizer que já em 2008 tinha saído a Gramática Houaiss da Língua Portuguesa, de autoria de José Carlos de Azeredo, inovadora sob muitos aspectos. O que caracteriza essas obras gramaticais é sua opção explícita pela descrição do português brasileiro vivo contemporâneo tal como ele realmente é e, sobretudo, a recusa de usar a escrita literária “clássica” como único material de estudo. Quase cem anos depois do surgimento da ciência linguística moderna, que provou que é necessário priorizar a língua falada para o conhecimento do real funcionamento de qualquer idioma humano, somente agora vêm à luz compêndios gramaticais abrangentes que procuram explicar o que é, de fato, a língua majoritária dos brasileiros, sem contrastar os usos “populares” (haja preconceito!) ou “coloquiais” (odeio essa palavra!) à “escrita literária” tomada sempre como “exemplar”. Como é que se faz isso? Vamos ver.
O pronome “ele” é usado como objeto direto (“vi ele”) no português há mais de mil anos: basta ler os textos medievais. Em dado momento da história de sua língua, os portugueses abandonaram esse uso (nenhuma surpresa, já que as línguas mudam sem parar). Ele, porém, continuou vivo e atuante no português brasileiro e africano. No entanto, só porque os portugueses não dizem “vi ele”, esse uso sempre foi tido como “errado”, como se o “certo” fosse sempre apenas o que os 10 milhões de lusitanos falam, em detrimento dos outros 200 milhões de falantes da língua mundo afora! Pois bem, na gramática de Perini, sem nenhum rodeio, encontramos o seguinte: “Alguns pronomes só têm uma forma, que vale para todas as funções. É o caso de ele, ela e seus plurais, que não variam formalmente quando em funções diferentes: Eu chamei ele para ajudar na cozinha; Ela passou no exame da OAB; De repente eu vi eles chegando de táxi.” Já na obra de Castilho temos: “O pronome ele pode funcionar (i) como objeto direto: Maria viu ela; (ii) redobrar uma construção de tópico: A Maria, ela ainda não chegou […]”.
Essas descrições são claras, objetivas, realistas, não lançam juízos de valor sobre os usos da língua: dizem como ela é. Muito diferente de um famoso dicionário que diz que o uso de “ele” como objeto é coisa de “pessoas incultas” ou “cultas descuidadas” ou de uma gramática de filólogo renomado que diz que esse uso, embora “tenha raízes antigas no idioma […] deve ser hoje evitado”, isso depois de atribuir o uso à “fala vulgar”.
Não tem mais cabimento continuar a analisar a língua e, pior, a ensiná-la como se ela não fosse o que é: um universo heterogêno, multifacetado, variável e mutante, com vínculos indissociáveis com a complexidade social e cultural. Temos que abandonar o medo de encarar a língua como um fenômeno complexo e, mais ainda, a tentativa de construir um modelo idealizado e inalcançável de utopia linguística, jogando todos os outros incontáveis e importantes usos na lata de lixo do “erro”.

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