ou palavra sem contexto

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Orfeu, Eurídice, Hermes

Eram as minas ásperas das almas.
Como veios de prata caminhavam
silentes pela treva. Das raízes
brotava o sangue que parece aos vivos,
na treva, duro como pórfiro. Depois
nada mais foi vermelho.

Somente rochas,
bosques imateriais. Pontes sobre o vazio
e o lago imenso, cinza, cego,
que sobre o fundo jaz, distante, como
um céu de chuva sobre uma paisagem.
Por entre os prados, suave, em plena calma,
deitado, como longa veia branca,
via-se o risco pálido da estrada.

Desta única via vinham eles.

À frente o homem com o manto azul,
esguio, olhar em alvo, mudo, inquieto.
Sem mastigar, seu passo devorava a estrada
em grandes tragos; suas mãos pendiam
rígidas, graves, das dobras das vestes
e não sabiam mais da leve lira
que brotava da ilharga como um feixe
de rosas dentre ramos de oliveira.
seus sentidos estavam em discórdia:
o olhar corria adiante como um cão,
voltava presto, e logo andava longe,
parando, alerta, na primeira curva,
mas o ouvido estacava como um faro.
Às vezes parecia-lhe sentir
a lenta caminhada dos dois outros
que o acompanhavam pela mesma senda.

Mas só restava o eco dos seus passos
a subir e do vento no seu manto.
A si mesmo dizia que eles vinham.
Gritava, ouvindo a voz esmorecer.

Eles vinham, os dois, vinham atrás,
em tardo caminhar. Se ele pudesse
voltar-se uma só vez (se contemplá-los
não fosse o fim de todo o empreendimento
nunca antes intentado) então veria
as duas sombras a seguir, silentes:

o deus das longas rotas e mensagens,
o capacete sobre os olhos claros,
o fino caduceu diante do corpo,
um palpitar de asas junto aos pés
e, confiada à mão esquerda: ela.

A mais amada, essa por quem a lira
chorou mais que o chorar das carpideiras,
por quem se ergueu um mundo de chorar,
um mundo com florestas e com vales,
estradas, povos, campos, rios, feras;
um mundo-pranto tendo como o outro
um sol e um céu calado com seus astros,
um céu-pranto de estrelas desconformes -
a mais amada.

Ia guiada pela mão do deus,
o andar tolhido pelas longas vestes,
ncerto, tímido, sem pressa .
Ia dentro de si, como esperança,
e não pensava no homem que ia à frente,
nem no caminho que subia aos vivos.
Ia dentro de si. E o dom da morte
dava-lhe plenitude.
Como um fruto em doçura e escuridão,
estava plena em sua grande morte,
tão nova que não tinha entendimento.

Entrar em uma nova adolescência
inviolada. Seu sexo se fechava
como flor em botão ao entardecer
e suas mãos estavam tão distantes
de enlaçar outro ser que mesmo o toque
levíssimo do guia, o deus ligeiro,
a magoava por nímia intimidade.

Não era mais a jovem resplendente
que ecoava nos cantos do poeta,
nem o aroma do leito do casal
nem ilha e propriedade de um só homem.

Estava solta como os seus cabelos,
liberta como a chuva quando cai,
exposta como farta provisão.

Agora era raiz.

E quando enfim o deus
a deteve e, com voz cheia de dor,
disse as palavras: “Ele se voltou.” -
ela não compreendeu e disse: “Quem?”

Mas pouco além, sombrio, frente à clara
saída, se postava alguém, o rosto já não reconhecível. Esse viu
em meio ao risco branco do caminho

o deus das rotas, com olhar tristonho,
volver-se, mudo, e acompanhar o vulto
que retornava pela mesma via,
o andar tolhido pelas longas vestes,
incerto, tímido, sem pressa.


Rilke – Poesia-CoisaTradução: Augusto de Campos