ou palavra sem contexto

segunda-feira, 14 de março de 2011

“As metáforas realmente boas são sempre as mesmas"

Sartre é o autor de L'Idiot de la Famille. Entre outras coisas, esse ensaio fala sobre o fetichismo por botas, botins e pantufas, “tão importante na vida e na obra de Gustave Flaubert”. O ensaio narra também as possíveis práticas onanistas do escritor nos anos de feitura de  “Madame Bovary”, entre 1851 e 1856.
         Também afeito a pés, Mario Vargas Llosa emite opinião nada entusiasta ao livro de Sartre. Em A Orgia Perpétua, que trata de Flaubert e Mme Bovary, está assim impresso pelo autor: “fica-se com a sensação gigantesca da tarefa que não chega jamais a cumprir o desígnio enunciado no prólogo”, “o livro interessa mais ao sartreano que ao flaubertiano”.
         Um dia, Sartre esteve na África. O passeio do filósofo pelo continente é comentado por Nelson Rodrigues:

Na volta deu uma entrevista. Perguntou um dos rapazes da reportagem: “Que diz o senhor da literatura africana?”. Vejam a resposta do moedeiro falso:  “Toda literatura africana não vale a fome de uma criancinha negra”.
Vamos imaginar se, em vez de Sartre, fosse Flaubert. Que diria Flaubert? Para Flaubert, mil vezes mais importante do que qualquer mortalidade infantil ou adulta é uma frase bem-sucedida. (...) Que pereça a humanidade e viva a literatura.

         “Homem-Pena”, “numa maneira de viver no meio dado”. Essas definições levantadas por Llosa parecem desnecessárias frente à poderosa imagem rodrigueana. À parte a gratuidade da nota, o jornalista mostra, com bastante delicadeza, um brutal conhecimento sobre Flaubert. Prefere-se, frente às mazelas do mundo, aquelas de que trata a literatura, “o único meio de suportar a existência”, frase de Flaubert.
         Acredito que, no que diz respeito ao estilo narrativo de Flaubert, e ao narrador em geral, da ascensão e sua queda, seria interessante opormos a leitura de qualquer obra de Sartre com a de “O Reacionário”, do Nelson. Na leitura do segundo, sairíamos mais edificados:

Um amigo entrou na redação e fez a pergunta aterrada: “Vocês não pensam?”.
Não, não pensamos. O jornal é uma batalha contra o horário. Ninguém tem tempo de pensar. Flaubert perdia uma semana escolhendo entre mil sinônimos. Buscava a palavra absoluta. Infelizmente, tais rigores estilísticos são inviáveis na redação moderna. E, como escrevemos sem pensar, chega a parecer que as olivettis e as remingtons pensam por nós.

         Há, nesse trecho, um microscópico tratado sobre o trabalho narrativo. E, se apenas tangencia a linguagem empregada com “responsabilidade”, “honestidade” e “esmero”, onde, como propõe Auerbach, “repousa a arte de Flaubert”, resume bem o que há em sua narrativa.
         A intenção deste artigo é enviesar pelo romance do século XIX, por meio da leitura de Lukacs e Auerbach, para, posteriormente, tratar do narrador em Me. Bovary, mirando o incansável passeio de carruagem de Emma e Léon Dupois, seu segundo amante.
         Seguimos, portanto, com a definição do romance daquele período, pela leitura de A Teoria do Romance. A seguinte pontuação é de Lukács:

       [No Romance do Século XIX] existe uma tendência à passividade, a tendência de esquivar-se de lutas e conflitos externos, e não os acolhe, a tendência de liquidar na alma tudo quanto se reporta à própria alma. Nessa possibilidade, sem dúvida, reside a problemática decisiva dessa forma romanesca: a perda do simbolismo épico, a dissolução da forma numa sucessão nebulosa e não-configurada de estados de ânimo e reflexões sobre estados de ânimo, a substituição da fábula configurada sensivelmente pela análise psicológica.

         Segundo Lukács, em dado momento, a progressão romanesca assistiu a uma relação inadequada entre a alma e a realidade. Essa desmedida nasce do fato “de a alma ser mais ampla e mais vasta que os destinos que a vida lhe é capaz de oferecer”.
         O objeto de composição literária desse período trata, portanto, do conflito entre a realidade exterior e uma outra existência, esta puramente interior, que considera a si mesma como essência do mundo, a única realidade verdadeira. Coube ao narrador preencher os seus heróis com o mesmo material de que é feito o sonho.
        
Quanto mais dolorosa e profundamente se enraiza a necessidade de opor uma radiante crença juvenil ante uma virilidade madura e desiludida, tanto mais dolorosa e profundamente terá ele [o narrador] de compreender que se trata apenas de uma exigência, não de uma realidade efetiva.

         A profundidade que o herói acredita ter não é capaz de engolir a realidade, e é dessa percepção mesma que se origina a ironia. O papel do narrador, segundo Lukács, volta-se tanto contra seus heróis – que em puerilidade poeticamente necessária sucumbem na realização desta crença –, quanto contra sua própria sabedoria, obrigada a encarar a futilidade dessa batalha e a vitória definitiva de encarar a realidade.
         A ironia desdobra-se, então, em ambas as direções: na desesperança da luta, e na desesperança do abandono. Lukács entende por abandono “o deplorável fracasso de uma desejada adaptação a um mundo alheio de ideais, de um abandono de idealidade irreal da alma em prol de um controle da realidade”.
         No Duplo Engano, de Prosper Merimée, há uma passagem que ilustra esse desejo fantasista da fuga.
         Julia de Chaverny, mulher muito bonita, e que “casada há cerca de seis anos, e há cinco anos e seis meses, pouco mais ou menos, tinha reconhecido que não só lhe era impossível amar seu marido, mas também ter alguma estima por ele”, recebe as investidas do comandante Châteaufort, um jovem oficial de seu regimento. Nota-se que o ambiente em que se pratica o diálogo é dotado de silêncios, de suspiros, e de um vazio fértil aos aforismos e ao exercício irônico do narrador:

Julia, depois de ter cheirado o seu perfumador e o ramo diversas vezes, falou do calor do espetáculo, dos vestidos. Châteaufort escutava-a distraído, suspirava e agitava-se na cadeira, olhava para Julia, e continuava a suspirar. Julia começava a inquietar-se.
De repente ele exclamou:
  Como tenho saudades dos tempos da cavalaria!
  Os tempos da cavalaria! Por quê? – perguntou Julia. – Decerto porque um trajo da Idade-Média lhe ficaria bem.
  Julga-me muito vaidoso – disse êle num tom de amargura e de tristeza. – Não, lamento esse tempo... porque um homem que sentia ter coração... podia aspirar... muitas coisas... em suma, bastava vencer um gigante para agradar a uma dama... Olha, vê aquêle grande colosso no balcão? Eu queria que me ordenasse que fôsse pedir-lhe o bigode para em seguida me dar licença de lhe dizer três palavrinhas – sem se zangar.
  Que loucura! – exclamou Julia, corando até ao branco dos olhos, porque adivinhava já essas três palavrinhas.

         O mesmo movimento pode ser encontrado em um diálogo entre Emma Bovary e Léon. Permeado de referências irônicas, o trecho se constitui da enumeração cada vez mais pormenorizada dos motivos da dor de ambos. Nota-se: as práticas processuais irritavam Léon, outras vocações o atraíam, “e sua mãe não cessava de atormentá-lo em cada carta”.

Ela parecia determinada a deixá-lo falar sem interrompê-lo. Cruzando os braços e abaixando o rosto, observava a roseta de suas pantufas e com intermitência ia fazendo pequenos movimentos no cetim com os dedos dos pés.
Entretanto, suspirou:
  O que há de mais lamentável, não é verdade, é arrastar, como eu, uma existência inútil. Se nossas dores pudessem ser úteis a alguém, consolar-nos-íamos com o pensamento do sacrifício!
Ele pôs-se a elogiar a virtude, o dever e as imolações silenciosas, pois tinha ele mesmo uma incrível necessidade de devotamento que não conseguia saciar.
  Gostaria muito, disse ela, de ser uma religiosa de hospital.
  Ai de mim! Replicou ele, homens não têm estas missões santas e não vejo em parte alguma um ofício... exceto talvez o de médico...
Com um leve levantar de ombros Emma interrompeu-o para queixar-se de sua doença que quase a matara! Que pena! Ela não sofreria mais agora. Léon e seguida desejou le calme du tombeau [...] .

         Em comparação com dois autores do mesmo período, Balzac e Stendhal, a postura do escritor de Mme. Bovary é diferente. Quem o afirma é Auerbach, em Na Mansão de la Mole. Cioso de que a continuidade que seu herói atravessa em nada é virtude, o narrador de Flaubert distancia-se do objeto narrado, não emite juízos acerca dos tipos, e apenas relata o que objetivamente se passa aos seus heróis.
         Para Auerbach, “no caso de Stendhal e de Balzac, ouvimos com frequência, quase constantemente, o que o autor pensa acerca das suas personagens e dos acontecimentos”, por meio de comentários, ou morais, ou históricos, ou econômicos, ou comovidos, ou irônicos. Ainda segundo o crítico, ouvimos também o que as próprias personagens pensam ou sentem, “e isto ocorre freqüentemente de tal maneira que o autor se identifica com a personagem inteiramente”.
         Em Mme. Bovary, falta ao narrador essa postura. Não são expressas suas opiniões acerca de nenhum acontecimento, de nenhuma personagem – e, desse distanciamento, podemos insurgir toda ironia de sua narrativa. Segundo Auerbach, o papel de Flaubert limita-se a escolher os acontecimentos e a traduzi-los em linguagem, “e isto ocorre com a convicção de que qualquer acontecimento, se possível exprimi-lo limpa e integralmente, interpretaria inteiramente a si próprio e os seres humanos que dele participassem; muito melhor e mais inteiramente do que o poderia fazer qualquer opinião ou juízo que lhe fosse acrescentado”.
         De fato, sobre os personagens, são somente nas correspondências que podemos encontrar algum tipo de julgamento de Flaubert. “É de uma natureza um tanto perversa, uma moça de falsa poesia e de falsos sentimentos”, ele escreve sobre Emma – e há quem discorde da opinião do próprio autor (como não poderia ser de outra maneira, acredito que o cuidado epistolar do escritor não teve a mesma medida que o da feitura do romance).
         No intuito de fugir àquelas questões psicológicas, ou sócio-culturais concernentes à Emma, nos ateremos a outro personagem, o já crescido León Dupois.
         Toda covardia, ou dissimulação, ou indecisão que o cerca, esta quebrada pela súbita irrupção à carruagem, como veremos a seguir, somente é vista pelas atitudes a personagem, e pelas atitudes frente às situações a ele impostas, de maneira que não o saibamos pela pobre taxação do seu caráter.
         Tomemos como exemplo algumas passagens que antecedem ao passeio de fiacre. Após o final da apresentação de Lucia de Lammermoor, em Rouen, em que se promove o efusivo encontro entre o Sr. e Sra. Bovary e León Dupois, os protagonistas passam a discutir acerca da qualidade do cantor, um certo Lagardy. Charles lamentava ter saído antes do fim, justo quando “a coisa começava a diverti-lo”.
        
Então León, para mostrar-se entendido, pôs-se a falar de música. Vira Tamburini, Rubini, Persiani, Grisi e perto deles  Lagardy, apesar de seus agudos, não valia nada [...].
  De resto, replicou o escrevente, ele dará em breve outra apresentação.
Mas Charles respondeu que partiriam no dia seguinte.
  A menos, acrescentou, dirigindo-se a sua mulher, que desejes ficar sozinha, minha querida?
E mudando de tática diante da ocasião inesperada que se oferecia a suas esperanças, o jovem começou a fazer o elogio de Lagardy no trecho final. Era algo de soberbo, de sublime!
        
         O caráter de León ainda não o podemos afirmá-lo na passagem, mas reconhecemos nela uma certa distância do narrador, que penas relata e dá voz aos personagens, nesse exemplo também costurado pela ironia.
         Após as despedidas, segue-se uma narração panorâmica sobre a vida parisiense de León. Seguimos com o escrevente já no dia seguinte, quando ainda não era certa a presença de Emma naquela cidade por mais um dia:

Ao deixar na noite anterior o Sr. e a Sra. Bovary, León seguira-os de longe na rua; depois, ao vê-los deter-se na Croix Rouge girara os calcanhares e passara a noite a meditar um plano.
No dia seguinte, portanto, pelas cinco horas, entrou na cozinha da hospedaria, com a garganta apertada, as faces pálidas e com aquela resolução dos poltrões, que nada detém.
  O doutor não está, respondeu o criado.
Aquilo pareceu-lhe de bom argúrio. Subiu.
Ela não se mostrou perturbada com a sua presença; pelo contrário, desculpou-se por ter esquecido de dizer-lhe onde estavam hospedados.
  Oh! Eu adivinhei, replicou León.
  Como?
Ele afirmou ter sido guiado para ela, ao acaso, por um instinto. Ela sorriu e logo, para reparar sua tolice, León contou que passara a manhã a procurá-la sucessivamente em todos os hotéis da cidade.

         Primeiramente, escreve o narrador, León segue o casal. Indagado pelo fato, porém, ele afirma ter adivinhado, de modo muito astuto. Nega-se, em seguida, mas nega-se por uma causa maior, sublime, um chamado, um instinto que, guiado pelo acaso, pela força maior, faz com que ele fatalmente encontre o hotel onde se hospeda a mulher. Mas, não contente, um tanto embaraçado, talvez com intenções que suscitem empatia pelo sacrifício, pela humilhação, pelo trabalho laborioso e degradante, León afirma ter perscrutado, porta a porta, todas as hospedarias da cidade.
         Com sorte, não encontramos a enumeração dessas tantas palavras na narrativa – o que sabemos, sabemos por Léon, por meio de suas respostas para Emma.
         Dada de maneira impiedosamente objetiva pelo narrador, encontramos uma constante na personagem, um certo movimento característico que, não sem algum pedantismo, e muita coragem, chamamos “non sequitur”.
         No dia seguinte, marcado o encontro dos dois amantes numa catedral,

[...] com a janela aberta e cantarolando na sacada, o próprio León engraxou seus sapatos passando-lhes várias camadas. Pôs as calças brancas, meias finas, uma casaca verde, derramou em seu lenço todos os perfumes que possuía e depois de ter mandado frisar o cabelo, desfrisou-o para dar-lhe uma elegância mais natural”.
        
         Mais de uma vez, uma ação cometida pela personagem é negada por meio de uma nova, que é também anulada por outra que a procede. Essa sequência nunca é conduzida pelo outro, pela circunstância, ou pelo narrador, mas por ele mesmo, León, o que, longe de tipificá-lo, dá a ele traços mais profundos, talvez naturais, uma vez que, junto ao narrador, distamo-nos da personagem o bastante para uma qualquer análise moral.
         Em outro episódio, dá-se o encontro dos amantes na catedral de Rouen. Na ocasião, mais uma vez, das possibilidades passíveis de nele ocorrer qualquer uma contrariedade de sentimentos, o escrevente as sente todas, em totalidade:

         “Emma entra na capela da Virgem, onde, ajoelhando-se contra uma cadeira pôs-se a rezar. O jovem irritou-se com aquela fantasia beata; em seguida sentiu, contudo, um certo encanto ao vê-la durante o encontro assim perdida em orações como uma marquesa andalusa; em seguida, não tardou a aborrecer-se, pois ela não acabava nunca”.

         Apontada também por Llosa em A Orgia Perpétua, a extensão da personalidade humana pode ser notada tanto nas ações no desenvolver do enredo, caso de León, quanto nos objetos que, dotados “de qualidade insuspeitadas”, “de recôndita psicologia”, “de uma capacidade de comunicar mensagens e expressões”, podem informar tanto mais dos personagens ou de dada situação específica.

Em madame Bovary, por obra da discrição, certas coisas, como a casquette de Charles são mais loquazes e transcendentes que seus donos, e nos revelam, melhor que as palavras e os atos daqueles, a personalidade do amo: sua classe social, sua situação econômica, seus costumes, suas aspirações, sua imaginação, seu sentido artístico, suas crenças.

         Para Llosa, o ápice da atitude igualitária do narrador para com homens e coisas se dá no episódio da carruagem, onde o objeto é descrito como um ser dotado de vontade e mobilidade próprias. “Ao longo de três páginas”, defende Llosa, “tem-se a impressão de que é a carruagem, não o cocheiro, quem toma as iniciativas. [...] No maciço veículo acaba-se por perceber uma chispa de inteligência, aquela que não brota, em nenhum momento, do pobre cocheiro, incapaz de decifrar o capricho de seus clientes”.
         Ao episódio, basicamente uma enumeração de ruas e lugares, das idas e voltas de um fiacre, um carro de aluguel, Llosa dá o epíteto: é “o mais imaginativo episódio erótico da literatura francesa”. Sim, o é, mas não somente pelas “coisas humanizadas” de Llosa, mas também por uma questão ilustrada em O Narrador, de Benjamin: a da “História Natural”.
         Lá, por meio do exemplo de uma passagem de Reencontro Inesperado, de Johaan Peter Hebel, Benjamin lembra que as histórias contadas pelo narrador remetem à história natural. Na narrativa, escrita no início do século XIX, um jovem aprendiz morre em um acidente nas minas de Falun, no fundo de uma galeria subterrânea. Sua noiva se mantém além da morte, e vive para, já bem velhinha, reconhecer o cadáver do noivo, preservado por uma razão qualquer. É Benjamin quem pergunta: “Como mostrar palpavelmente o longo tempo decorrido desde o início da história?”.

       Entrementes, a cidade de Lisboa foi destruída por um terremoto, e a guerra dos Sete Anos terminou, e o imperador Francisco I morreu, e a ordem dos jesuítas foi dissolvida, e a Polônia foi retalhada, e a imperatriz Maria Tereza morreu, e Struensee foi executado, a América se tornou independente, e a potência combinada da França e da Espanha não pôde conquistar Gibraltar. Os turcos prenderam o general Stein na grota dos veteranos, na Hungria, e o imperador José  morreu. O rei Gustavo da Suécia tomou a Finlândia dos russos, e a Revolução Francesa e as grandes guerras começaram, e o rei Leopoldo II faleceu também. Napoleão conquistou a Prússia, e os ingleses bombardearam Copenhagen, e os camponeses semeavam e ceifavam. [...] Mas, quando no ano de 1809 os mineiros de Falun...”

          E só então a noiva reconhece o cadáver. O cheiro da morrinha é semelhante a um outro, que sai do interior de uma certa carruagem, “mais fechada que um túmulo”, mas “balançada como um navio”:
        
[A carruagem] passou por Saint Sever, pelo cais dos Curandiers, pelo cais dos Meules, mais uma vez pela ponte, pela praça do Champs-de-Mars e atrás dos jardins do hospital, onde alguns velhos de casaco preto passeavam ao sol ao longo de um terraço coberto por heras verdes. Subiu novamente o bulevar Bouvreuil, percorreu o bulevar Cauchoise, em seguida todo o Mont-Riboudet até a encosta de Devill.
Voltou; e então,sem direção nem destino, ela vagabundeou ao acaso. Foi vista em Saint-Pol, em Lescure, no monte Gargan, na Rouge-Mare e na praça do Gaillard-Bois, na rua Maladrie, na rua Dinanderie, diante de Saint-Romain, Saint-Vivien, Saint-Maclou, Saint-Nicaise, – diante de Alfândega, – na Basse-Vieille-Tour, nas Tros-Pipes e no Cemitério Monumental. De tempos em tempos, [...].

         Antes de sua edição em livro, a publicação da passagem pela Revue de Paris fora censurada, a despeito de Flaubert. Segundo a leitura do processo movido pelo Ministério Público de Paris, o escritor exigiu que se aludisse à supressão por meio de uma nota de pé de página, o que, indiretamente, incitou com que os leitores continuassem o enredo como bem lhes parecia à própria lubricidade imaginária.
         Ora, curiosamente, é isso mesmo o que faz o narrador na versão integral do livro. Nas boas palavras de Llosa, “atinge o clímax erótico do romance por meio de um hiato, um escamoteio que consegue potencializar ao máximo o material ocultado pelo narrador”.
         A parte censurada, posteriormente anexada à versão definitiva do livro, apenas sugere, por meio do ponto de vista do cocheiro, e de uma interminável série de ruas e avenidas, um certo ambiente lascivo. Ou seja, o narrador não explicita o interior do veículo, mas sim expressa, de maneira INdireta, com peculiar recurso estilístico, o passeio realizado pelos amantes. Ao leitor, é apenas sugerido que seja ele o responsável pelas imagens ali narradas.
          Esse outro discurso indireto aproxima o narrador do leitor, não dos personagens. O leitor é então induzido a cumprir a narrativa de modo simultâneo à própria leitura, recorrendo assim, analogicamente, a si mesmo.
         A partir do momento em que a enumeração das ruas é prolongada, intercalada por interjeições afirmativas para que se dê continuidade, que se avance ao passeio – “Continue!”, “Vá em frente!”, León brada –, é dado ao leitor uma inflexão: é o leitor quem cria a narrativa, pois ali nada é descrito, senão aquilo que ocorre “lá”, no exterior da carruagem, e não “aqui”, no sentido mais amplo que esta palavra pode adquirir.
         Mas, não fossemos apresentados aos objetos personalizados, ao frágil caráter dos dois amantes, aos demais recursos que o narrador já se utilizara ao longo da obra, seria por meio das metáforas, para desgosto de Llosa, que encontraríamos motriz para a sua substancial leitura.
         Segundo Llosa, as metáforas “são demasiadas, muitas delas artificiosas, de um rebuscamento que destoa com a naturalidade perfeitamente fingida do estilo”. O escritor admite que elas são úteis por seu caráter imediatista, “porque a justeza da comparação faz visíveis e dá mais relevo às condições psicológicas, morais ou simbólicas do episódio”. Mas pondera, opinando que algumas metáforas são, por vezes, “de gosto duvidoso”, “fáceis”, como aquela que compara a felicidade matrimonial com a digestão.
         A final do passeio da carruagem, a mão de Emma – a mesma que escrevera uma cartinha ao amante, tencionada a cancelar o encontro, e não consumar o adultério – passa sob as pequenas cortinas de fazenda amarela, e lança pedaços de papel, que, como borboletas brancas num campo de trevos vermelhos floridos, se dispersam pela tarde.
         Terminamos este artigo com a seminal metáfora propiciada pelo narrador e, obviamente, tomando partido de Borges, para quem “as metáforas realmente boas são sempre as mesmas”. Pois o tempo é como uma estrada, a morte, como o sono, a vida...

João Paulo Bense é aluno de Letras da Universidade de São Paulo.
        

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