ou palavra sem contexto

sábado, 8 de outubro de 2011

Irmandade

Sou homem: duro pouco
e é enorme a noite.
Mas olho para cima:
as estrelas escrevem.
Sem entender compreendo:
Também sou escritura
e neste mesmo instante
alguém me soletra.

Octavio Paz

Postado por João

domingo, 2 de outubro de 2011

Onde você guarda seu racismo

João

Polêmica ou ignorância?

Discussão sobre livro didático só revela ignorância da grande imprensa
Marcos Bagno
Universidade de Brasília

Para surpresa de ninguém,a coisa se repetiu. A grande imprensa brasileira mais uma vez exibiu sua ampla e larga ignorância a respeito do que se faz hoje no mundo acadêmico e no universo da educação no campo do ensino de língua.
Jornalistas desinformados abrem um livro didático,leem metade de meia páginae saem falando coisas que depõem sempre muito mais contra eles mesmos doque eles mesmos pensam (se é que pensam nisso,prepotentementeconvencidos que são,quase todos,de que detêm o absoluto poder da informação).
Polêmica? Por que polêmica,meus senhores e minhas senhoras? Já faz mais de quinze anos que os livros didáticos de língua portuguesa disponíveis no mercado e avaliados e aprovados pelo Ministério da Educação abordam o tema da variação linguística e do seu tratamento em sala de aula. Não é coisa de petista,fiquem tranquilas senhoras comentaristas políticas da televisão brasileira e seus colegas explanadores do óbvio.
Já no governo FHC,sob a gestão do ministro Paulo Renato,os livros didáticos de português avaliados pelo MEC começavam a abordar os fenômenos da variação linguística,o caráter inevitavelmente heterogêneo de qualquer língua viva falada no mundo,a mudança irreprimível que transformou,tem transformado,transforma e transformará qualquer idioma usado por uma comunidade humana. Somente com uma abordagem assim as alunas e os alunos provenientes das chamadas “classes populares”poderão se reconhecer no material didático e não se sentir alvo de zombaria e preconceito. E,é claro,com a chegada ao magistério de docentes provenientes cada vez mais dessas mesmas “classes populares”,esses mesmos profissionais entenderão que seu modo de falar,e o de seus aprendizes,não é feio,nem errado,nem tosco,é apenas uma língua diferente daquela –devidamente fossilizada e conservada em formol –que a tradição normativa tenta preservar a ferro e fogo,principalmente nos últimos tempos,com a chegada aos novos meios de comunicação de pseudoespecialistas que,amparados em tecnologias inovadoras,tentam vender um peixe gramatiqueiro para lá de podre.
Enquanto não se reconhecer a especificidade do português brasileiro dentro doconjunto de línguas derivadas do português quinhentista transplantados para as colônias,enquanto não se reconhecer que o português brasileiro é uma língua em si,com gramática própria,diferente da do português europeu,teremos de conviver com essas situações no mínimo patéticas.
A principal característica dos discursos marcadamente ideologizados (sejam eles da direita ou da esquerda) é a impossibilidade de ver as coisas em perspectiva contínua,em redes complexas de elementos que se cruzam e entrecruzam,em ciclos constantes. Nesses discursos só existe o preto e o branco,o masculino e o feminino,o mocinho e o bandido,o certo e o errado e por aí vai. Darwin nunca disse em nenhum lugar de seus escritos que “o homem vem do macaco”. Ele disse,sim,que humanos e demais primatas deviam ter se originado de um ancestral comum. Mas essa visão mais sofisticada não interessava ao fundamentalismo religioso que precisava de um lema distorcido como “o homem vem do macaco”para empreender sua campanha obscurantista,que permanece em voga até hoje (inclusive no discurso da candidata azul disfarçada de verde à presidência da República no ano passado).
Da mesma forma,nenhum linguista sério,brasileiro ou estrangeiro,jamais disse ou escreveu que os estudantes usuários de variedades linguísticas mais distantes das normas urbanas de prestígio deveriam permanecer ali,fechados em sua comunidade,em sua cultura e em sua língua. O que esses profissionais vêm tentando fazer as pessoas entenderem é que defender uma coisa não significa automaticamente combater a outra. Defender o respeito à variedade linguística dos estudantes não significa que não cabe à escola introduzi-los aomundo da cultura letrada e aos discursos que ela aciona. Cabe à escola ensinar aos alunos o que eles não sabem! Parece óbvio,mas é preciso repetir isso a todo momento.
Não é preciso ensinar nenhum brasileiro a dizer “isso é para mim tomar?”,porque essa regra gramatical (sim,caros leigos,é uma regra gramatical) já faz parte da língua materna de 99% dos nossos compatriotas. O que é preciso ensinar é a forma “isso é para eu tomar?”,porque ela não faz parte da gramática da maioria dos falantes de português brasileiro,mas por ainda servir de arame farpado entre os que falam “certo”e os que falam “errado”,é dever da escola apresentar essa outra regra aos alunos,de modo que eles –se julgarem pertinente,adequado e necessário –possam vir a usá-la TAMBÉM. O problema da ideologia purista é esse também. Seus defensores não conseguem admitir que tanto faz dizer assisti o filme quanto assiti ao filme,que a palavra óculos pode ser usada tanto no singular (o óculos,como dizem 101% dos brasileiros) quanto no plural (os óculos,como dizem dois ou três gatos pingados).
O mais divertido (para mim,pelo menos,talvez por um pouco de masoquismo) é ver os mesmos defensores da suposta “língua certa”,no exato momento em que a defendem,empregar regras linguísticas que a tradição normativa que eles acham que defendem rejeitaria imediatamente. Pois ontem,vendo o Jornal das Dez,da GloboNews,ouvi da boca do sr. Carlos Monforte essa deliciosa pergunta:“Como é que fica então as concordâncias?”. Ora,sr. Monforte,eu lhe devolvo a pergunta:“E as concordâncias,como é que ficam então?
.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

EU VI ELE, SIM, E DAÍ?!

Marcos Bagno
Professor Doutor da UnB

Pouco tempo atrás, comemorei nesta coluna a publicação da Gramática do Português Brasileiro, de Mário Perini. Agora é de toda justiça celebrar também o recente lançamento da Nova Gramática do Português Brasileiro, de Ataliba T. de Castilho, reconhecido internacionalmente como um dos mais importantes linguistas brasileiros contemporâneos. Além disso, também é preciso dizer que já em 2008 tinha saído a Gramática Houaiss da Língua Portuguesa, de autoria de José Carlos de Azeredo, inovadora sob muitos aspectos. O que caracteriza essas obras gramaticais é sua opção explícita pela descrição do português brasileiro vivo contemporâneo tal como ele realmente é e, sobretudo, a recusa de usar a escrita literária “clássica” como único material de estudo. Quase cem anos depois do surgimento da ciência linguística moderna, que provou que é necessário priorizar a língua falada para o conhecimento do real funcionamento de qualquer idioma humano, somente agora vêm à luz compêndios gramaticais abrangentes que procuram explicar o que é, de fato, a língua majoritária dos brasileiros, sem contrastar os usos “populares” (haja preconceito!) ou “coloquiais” (odeio essa palavra!) à “escrita literária” tomada sempre como “exemplar”. Como é que se faz isso? Vamos ver.
O pronome “ele” é usado como objeto direto (“vi ele”) no português há mais de mil anos: basta ler os textos medievais. Em dado momento da história de sua língua, os portugueses abandonaram esse uso (nenhuma surpresa, já que as línguas mudam sem parar). Ele, porém, continuou vivo e atuante no português brasileiro e africano. No entanto, só porque os portugueses não dizem “vi ele”, esse uso sempre foi tido como “errado”, como se o “certo” fosse sempre apenas o que os 10 milhões de lusitanos falam, em detrimento dos outros 200 milhões de falantes da língua mundo afora! Pois bem, na gramática de Perini, sem nenhum rodeio, encontramos o seguinte: “Alguns pronomes só têm uma forma, que vale para todas as funções. É o caso de ele, ela e seus plurais, que não variam formalmente quando em funções diferentes: Eu chamei ele para ajudar na cozinha; Ela passou no exame da OAB; De repente eu vi eles chegando de táxi.” Já na obra de Castilho temos: “O pronome ele pode funcionar (i) como objeto direto: Maria viu ela; (ii) redobrar uma construção de tópico: A Maria, ela ainda não chegou […]”.
Essas descrições são claras, objetivas, realistas, não lançam juízos de valor sobre os usos da língua: dizem como ela é. Muito diferente de um famoso dicionário que diz que o uso de “ele” como objeto é coisa de “pessoas incultas” ou “cultas descuidadas” ou de uma gramática de filólogo renomado que diz que esse uso, embora “tenha raízes antigas no idioma […] deve ser hoje evitado”, isso depois de atribuir o uso à “fala vulgar”.
Não tem mais cabimento continuar a analisar a língua e, pior, a ensiná-la como se ela não fosse o que é: um universo heterogêno, multifacetado, variável e mutante, com vínculos indissociáveis com a complexidade social e cultural. Temos que abandonar o medo de encarar a língua como um fenômeno complexo e, mais ainda, a tentativa de construir um modelo idealizado e inalcançável de utopia linguística, jogando todos os outros incontáveis e importantes usos na lata de lixo do “erro”.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Antes do começo

Ruídos confusos, claridade incerta.
Outro dia começa.
Um quarto em penumbra
e dois corpos estendidos.
Em minha fronte me perco
numa planície vazia.
E as horas afiam suas navalhas.
Mas a meu lado tu respiras;
íntima e longínqua
fluis e não te moves.
Inacessível se te penso,
com os olhos te apalpo,
te vejo com as mãos.
Os sonhos nos separam
e o sangue nos reúne:
Somos um rio que pulsa.
Sob tuas pálpebras amadurece
a semente do sol.

O mundo
No entanto, não é real,
o tempo duvida:
Só uma coisa é certa,
o calor da tua pele.
Em tua respiração escuto
as marés do ser,
a sílaba esquecida do Começo.

Octavio Paz

quinta-feira, 17 de março de 2011

Sinfonia de Blogs

Música erudita gratuita ganha espaço na web com a difusão de páginas ambiciosas, temáticas e com discurso antipirataria


IRINEU FRANCO PERPETUO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Depois do YouTube, das rádios via web e das redes de compartilhamento peer-to-peer, agora a blogosfera também está sendo usada como meio de difusão gratuita de música erudita.
Blogueiros de todo o planeta estão compartilhando suas coleções de discos, colocando-as para download.


Não é preciso ser um expert para conseguir baixar os CDs -basta clicar no link para download, que remete a um servidor no qual os discos estão armazenados. A única dificuldade é que eles normalmente chegam em formato .rar, compactado. Para descompactá-los, é só baixar o 7-zip, um programa gratuito, desenvolvido como software livre, mas que roda em Windows, e que pode ser obtido em http://www.7-zip.org/.


Um dos mais ambiciosos blogs nesta área se chama, sugestivamente, Libros Libres Música Libre (libroslibresmusicalibre.blogspot.com).
Gerenciado por um coletivo que reverencia a memória do educador mexicano Rubén Vizcaíno Valencia, o blog disponibiliza para download gratuito as obras completas de Bach e Beethoven, integrais sinfônicas de Mahler, Bruckner, Tchaikovski e Nielsen, a música de câmara de Brahms e todo o legado fonográfico da soprano Maria Callas, entre outras preciosidades.


Há blogs que se centram em áreas de interesse temático. O italiano Brainle de Champaigne (passacaille.blogspot.com), por exemplo, traz vasto acervo de música medieval, renascentista e barroca, enquanto o argentino Il Canto Sospeso (ilcantosospeso.blogspot.com) está centrado na música dos séculos 20 e 21.


No Brasil, vale especial menção PQP Bach (pqpbach.opensadorselvagem.org), um blog bem-humorado, com diversos colaboradores, textos sobre compositores e intérpretes e oferta bastante diversificada; e o Brazilian Concert Music (musicabrconcerto.blogspot.com), exclusivamente focado na música erudita de autores nacionais, levando ao ar muitos discos que não foram lançados comercialmente e até itens que jamais mereceram edição em CD.
"Caráter cultural"


Todos esses blogs dizem não promover a pirataria, pois não cobram pelo acesso aos discos. Com algumas variações, suas páginas de entrada costumam dizer mais ou menos a mesma coisa: que o caráter dos blogs é meramente cultural e de divulgação; e que, tendo gostado do que baixaram, os internautas devem sempre comprar os CDs originais, cuja qualidade de áudio é superior à dos downloads.


Blogs como PQP Bach e Music Is the Key (orchestralworks.blogspot.com) colocam, ao lado da opção para download gratuito, um link para a compra do CD na loja virtual Amazon. E a página de entrada do Brazilian Concert Music pede a quem se sentir ofendido ou prejudicado com o conteúdo de alguma postagem que avise por e-mail os administradores do blog, que se comprometem a tirá-la do ar.


Não é impossível que na origem de tal precaução esteja o destino do Sombarato, blog especializado em música popular brasileira, com um acervo superior a 2.000 títulos, que teve mais de milhões de acessos em um ano e meio, antes de ser tirado do ar, em setembro do ano passado, pelo Google, devido a ação judicial da gravadora Biscoito Fino.


A base jurídica para tirar o blog do ar foi o Digital Millennium Copyright Act (DMCA), aprovado em 1998, nos Estados Unidos. Entre outras medidas, o DMCA permite que detentores de direitos autorais solicitem aos provedores de serviços on-line que bloqueiem o acesso ou retirem de seus sistemas conteúdos que violem direitos autorais.



http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0601200908.htm

segunda-feira, 14 de março de 2011

“As metáforas realmente boas são sempre as mesmas"

Sartre é o autor de L'Idiot de la Famille. Entre outras coisas, esse ensaio fala sobre o fetichismo por botas, botins e pantufas, “tão importante na vida e na obra de Gustave Flaubert”. O ensaio narra também as possíveis práticas onanistas do escritor nos anos de feitura de  “Madame Bovary”, entre 1851 e 1856.
         Também afeito a pés, Mario Vargas Llosa emite opinião nada entusiasta ao livro de Sartre. Em A Orgia Perpétua, que trata de Flaubert e Mme Bovary, está assim impresso pelo autor: “fica-se com a sensação gigantesca da tarefa que não chega jamais a cumprir o desígnio enunciado no prólogo”, “o livro interessa mais ao sartreano que ao flaubertiano”.
         Um dia, Sartre esteve na África. O passeio do filósofo pelo continente é comentado por Nelson Rodrigues:

Na volta deu uma entrevista. Perguntou um dos rapazes da reportagem: “Que diz o senhor da literatura africana?”. Vejam a resposta do moedeiro falso:  “Toda literatura africana não vale a fome de uma criancinha negra”.
Vamos imaginar se, em vez de Sartre, fosse Flaubert. Que diria Flaubert? Para Flaubert, mil vezes mais importante do que qualquer mortalidade infantil ou adulta é uma frase bem-sucedida. (...) Que pereça a humanidade e viva a literatura.

         “Homem-Pena”, “numa maneira de viver no meio dado”. Essas definições levantadas por Llosa parecem desnecessárias frente à poderosa imagem rodrigueana. À parte a gratuidade da nota, o jornalista mostra, com bastante delicadeza, um brutal conhecimento sobre Flaubert. Prefere-se, frente às mazelas do mundo, aquelas de que trata a literatura, “o único meio de suportar a existência”, frase de Flaubert.
         Acredito que, no que diz respeito ao estilo narrativo de Flaubert, e ao narrador em geral, da ascensão e sua queda, seria interessante opormos a leitura de qualquer obra de Sartre com a de “O Reacionário”, do Nelson. Na leitura do segundo, sairíamos mais edificados:

Um amigo entrou na redação e fez a pergunta aterrada: “Vocês não pensam?”.
Não, não pensamos. O jornal é uma batalha contra o horário. Ninguém tem tempo de pensar. Flaubert perdia uma semana escolhendo entre mil sinônimos. Buscava a palavra absoluta. Infelizmente, tais rigores estilísticos são inviáveis na redação moderna. E, como escrevemos sem pensar, chega a parecer que as olivettis e as remingtons pensam por nós.

         Há, nesse trecho, um microscópico tratado sobre o trabalho narrativo. E, se apenas tangencia a linguagem empregada com “responsabilidade”, “honestidade” e “esmero”, onde, como propõe Auerbach, “repousa a arte de Flaubert”, resume bem o que há em sua narrativa.
         A intenção deste artigo é enviesar pelo romance do século XIX, por meio da leitura de Lukacs e Auerbach, para, posteriormente, tratar do narrador em Me. Bovary, mirando o incansável passeio de carruagem de Emma e Léon Dupois, seu segundo amante.
         Seguimos, portanto, com a definição do romance daquele período, pela leitura de A Teoria do Romance. A seguinte pontuação é de Lukács:

       [No Romance do Século XIX] existe uma tendência à passividade, a tendência de esquivar-se de lutas e conflitos externos, e não os acolhe, a tendência de liquidar na alma tudo quanto se reporta à própria alma. Nessa possibilidade, sem dúvida, reside a problemática decisiva dessa forma romanesca: a perda do simbolismo épico, a dissolução da forma numa sucessão nebulosa e não-configurada de estados de ânimo e reflexões sobre estados de ânimo, a substituição da fábula configurada sensivelmente pela análise psicológica.

         Segundo Lukács, em dado momento, a progressão romanesca assistiu a uma relação inadequada entre a alma e a realidade. Essa desmedida nasce do fato “de a alma ser mais ampla e mais vasta que os destinos que a vida lhe é capaz de oferecer”.
         O objeto de composição literária desse período trata, portanto, do conflito entre a realidade exterior e uma outra existência, esta puramente interior, que considera a si mesma como essência do mundo, a única realidade verdadeira. Coube ao narrador preencher os seus heróis com o mesmo material de que é feito o sonho.
        
Quanto mais dolorosa e profundamente se enraiza a necessidade de opor uma radiante crença juvenil ante uma virilidade madura e desiludida, tanto mais dolorosa e profundamente terá ele [o narrador] de compreender que se trata apenas de uma exigência, não de uma realidade efetiva.

         A profundidade que o herói acredita ter não é capaz de engolir a realidade, e é dessa percepção mesma que se origina a ironia. O papel do narrador, segundo Lukács, volta-se tanto contra seus heróis – que em puerilidade poeticamente necessária sucumbem na realização desta crença –, quanto contra sua própria sabedoria, obrigada a encarar a futilidade dessa batalha e a vitória definitiva de encarar a realidade.
         A ironia desdobra-se, então, em ambas as direções: na desesperança da luta, e na desesperança do abandono. Lukács entende por abandono “o deplorável fracasso de uma desejada adaptação a um mundo alheio de ideais, de um abandono de idealidade irreal da alma em prol de um controle da realidade”.
         No Duplo Engano, de Prosper Merimée, há uma passagem que ilustra esse desejo fantasista da fuga.
         Julia de Chaverny, mulher muito bonita, e que “casada há cerca de seis anos, e há cinco anos e seis meses, pouco mais ou menos, tinha reconhecido que não só lhe era impossível amar seu marido, mas também ter alguma estima por ele”, recebe as investidas do comandante Châteaufort, um jovem oficial de seu regimento. Nota-se que o ambiente em que se pratica o diálogo é dotado de silêncios, de suspiros, e de um vazio fértil aos aforismos e ao exercício irônico do narrador:

Julia, depois de ter cheirado o seu perfumador e o ramo diversas vezes, falou do calor do espetáculo, dos vestidos. Châteaufort escutava-a distraído, suspirava e agitava-se na cadeira, olhava para Julia, e continuava a suspirar. Julia começava a inquietar-se.
De repente ele exclamou:
  Como tenho saudades dos tempos da cavalaria!
  Os tempos da cavalaria! Por quê? – perguntou Julia. – Decerto porque um trajo da Idade-Média lhe ficaria bem.
  Julga-me muito vaidoso – disse êle num tom de amargura e de tristeza. – Não, lamento esse tempo... porque um homem que sentia ter coração... podia aspirar... muitas coisas... em suma, bastava vencer um gigante para agradar a uma dama... Olha, vê aquêle grande colosso no balcão? Eu queria que me ordenasse que fôsse pedir-lhe o bigode para em seguida me dar licença de lhe dizer três palavrinhas – sem se zangar.
  Que loucura! – exclamou Julia, corando até ao branco dos olhos, porque adivinhava já essas três palavrinhas.

         O mesmo movimento pode ser encontrado em um diálogo entre Emma Bovary e Léon. Permeado de referências irônicas, o trecho se constitui da enumeração cada vez mais pormenorizada dos motivos da dor de ambos. Nota-se: as práticas processuais irritavam Léon, outras vocações o atraíam, “e sua mãe não cessava de atormentá-lo em cada carta”.

Ela parecia determinada a deixá-lo falar sem interrompê-lo. Cruzando os braços e abaixando o rosto, observava a roseta de suas pantufas e com intermitência ia fazendo pequenos movimentos no cetim com os dedos dos pés.
Entretanto, suspirou:
  O que há de mais lamentável, não é verdade, é arrastar, como eu, uma existência inútil. Se nossas dores pudessem ser úteis a alguém, consolar-nos-íamos com o pensamento do sacrifício!
Ele pôs-se a elogiar a virtude, o dever e as imolações silenciosas, pois tinha ele mesmo uma incrível necessidade de devotamento que não conseguia saciar.
  Gostaria muito, disse ela, de ser uma religiosa de hospital.
  Ai de mim! Replicou ele, homens não têm estas missões santas e não vejo em parte alguma um ofício... exceto talvez o de médico...
Com um leve levantar de ombros Emma interrompeu-o para queixar-se de sua doença que quase a matara! Que pena! Ela não sofreria mais agora. Léon e seguida desejou le calme du tombeau [...] .

         Em comparação com dois autores do mesmo período, Balzac e Stendhal, a postura do escritor de Mme. Bovary é diferente. Quem o afirma é Auerbach, em Na Mansão de la Mole. Cioso de que a continuidade que seu herói atravessa em nada é virtude, o narrador de Flaubert distancia-se do objeto narrado, não emite juízos acerca dos tipos, e apenas relata o que objetivamente se passa aos seus heróis.
         Para Auerbach, “no caso de Stendhal e de Balzac, ouvimos com frequência, quase constantemente, o que o autor pensa acerca das suas personagens e dos acontecimentos”, por meio de comentários, ou morais, ou históricos, ou econômicos, ou comovidos, ou irônicos. Ainda segundo o crítico, ouvimos também o que as próprias personagens pensam ou sentem, “e isto ocorre freqüentemente de tal maneira que o autor se identifica com a personagem inteiramente”.
         Em Mme. Bovary, falta ao narrador essa postura. Não são expressas suas opiniões acerca de nenhum acontecimento, de nenhuma personagem – e, desse distanciamento, podemos insurgir toda ironia de sua narrativa. Segundo Auerbach, o papel de Flaubert limita-se a escolher os acontecimentos e a traduzi-los em linguagem, “e isto ocorre com a convicção de que qualquer acontecimento, se possível exprimi-lo limpa e integralmente, interpretaria inteiramente a si próprio e os seres humanos que dele participassem; muito melhor e mais inteiramente do que o poderia fazer qualquer opinião ou juízo que lhe fosse acrescentado”.
         De fato, sobre os personagens, são somente nas correspondências que podemos encontrar algum tipo de julgamento de Flaubert. “É de uma natureza um tanto perversa, uma moça de falsa poesia e de falsos sentimentos”, ele escreve sobre Emma – e há quem discorde da opinião do próprio autor (como não poderia ser de outra maneira, acredito que o cuidado epistolar do escritor não teve a mesma medida que o da feitura do romance).
         No intuito de fugir àquelas questões psicológicas, ou sócio-culturais concernentes à Emma, nos ateremos a outro personagem, o já crescido León Dupois.
         Toda covardia, ou dissimulação, ou indecisão que o cerca, esta quebrada pela súbita irrupção à carruagem, como veremos a seguir, somente é vista pelas atitudes a personagem, e pelas atitudes frente às situações a ele impostas, de maneira que não o saibamos pela pobre taxação do seu caráter.
         Tomemos como exemplo algumas passagens que antecedem ao passeio de fiacre. Após o final da apresentação de Lucia de Lammermoor, em Rouen, em que se promove o efusivo encontro entre o Sr. e Sra. Bovary e León Dupois, os protagonistas passam a discutir acerca da qualidade do cantor, um certo Lagardy. Charles lamentava ter saído antes do fim, justo quando “a coisa começava a diverti-lo”.
        
Então León, para mostrar-se entendido, pôs-se a falar de música. Vira Tamburini, Rubini, Persiani, Grisi e perto deles  Lagardy, apesar de seus agudos, não valia nada [...].
  De resto, replicou o escrevente, ele dará em breve outra apresentação.
Mas Charles respondeu que partiriam no dia seguinte.
  A menos, acrescentou, dirigindo-se a sua mulher, que desejes ficar sozinha, minha querida?
E mudando de tática diante da ocasião inesperada que se oferecia a suas esperanças, o jovem começou a fazer o elogio de Lagardy no trecho final. Era algo de soberbo, de sublime!
        
         O caráter de León ainda não o podemos afirmá-lo na passagem, mas reconhecemos nela uma certa distância do narrador, que penas relata e dá voz aos personagens, nesse exemplo também costurado pela ironia.
         Após as despedidas, segue-se uma narração panorâmica sobre a vida parisiense de León. Seguimos com o escrevente já no dia seguinte, quando ainda não era certa a presença de Emma naquela cidade por mais um dia:

Ao deixar na noite anterior o Sr. e a Sra. Bovary, León seguira-os de longe na rua; depois, ao vê-los deter-se na Croix Rouge girara os calcanhares e passara a noite a meditar um plano.
No dia seguinte, portanto, pelas cinco horas, entrou na cozinha da hospedaria, com a garganta apertada, as faces pálidas e com aquela resolução dos poltrões, que nada detém.
  O doutor não está, respondeu o criado.
Aquilo pareceu-lhe de bom argúrio. Subiu.
Ela não se mostrou perturbada com a sua presença; pelo contrário, desculpou-se por ter esquecido de dizer-lhe onde estavam hospedados.
  Oh! Eu adivinhei, replicou León.
  Como?
Ele afirmou ter sido guiado para ela, ao acaso, por um instinto. Ela sorriu e logo, para reparar sua tolice, León contou que passara a manhã a procurá-la sucessivamente em todos os hotéis da cidade.

         Primeiramente, escreve o narrador, León segue o casal. Indagado pelo fato, porém, ele afirma ter adivinhado, de modo muito astuto. Nega-se, em seguida, mas nega-se por uma causa maior, sublime, um chamado, um instinto que, guiado pelo acaso, pela força maior, faz com que ele fatalmente encontre o hotel onde se hospeda a mulher. Mas, não contente, um tanto embaraçado, talvez com intenções que suscitem empatia pelo sacrifício, pela humilhação, pelo trabalho laborioso e degradante, León afirma ter perscrutado, porta a porta, todas as hospedarias da cidade.
         Com sorte, não encontramos a enumeração dessas tantas palavras na narrativa – o que sabemos, sabemos por Léon, por meio de suas respostas para Emma.
         Dada de maneira impiedosamente objetiva pelo narrador, encontramos uma constante na personagem, um certo movimento característico que, não sem algum pedantismo, e muita coragem, chamamos “non sequitur”.
         No dia seguinte, marcado o encontro dos dois amantes numa catedral,

[...] com a janela aberta e cantarolando na sacada, o próprio León engraxou seus sapatos passando-lhes várias camadas. Pôs as calças brancas, meias finas, uma casaca verde, derramou em seu lenço todos os perfumes que possuía e depois de ter mandado frisar o cabelo, desfrisou-o para dar-lhe uma elegância mais natural”.
        
         Mais de uma vez, uma ação cometida pela personagem é negada por meio de uma nova, que é também anulada por outra que a procede. Essa sequência nunca é conduzida pelo outro, pela circunstância, ou pelo narrador, mas por ele mesmo, León, o que, longe de tipificá-lo, dá a ele traços mais profundos, talvez naturais, uma vez que, junto ao narrador, distamo-nos da personagem o bastante para uma qualquer análise moral.
         Em outro episódio, dá-se o encontro dos amantes na catedral de Rouen. Na ocasião, mais uma vez, das possibilidades passíveis de nele ocorrer qualquer uma contrariedade de sentimentos, o escrevente as sente todas, em totalidade:

         “Emma entra na capela da Virgem, onde, ajoelhando-se contra uma cadeira pôs-se a rezar. O jovem irritou-se com aquela fantasia beata; em seguida sentiu, contudo, um certo encanto ao vê-la durante o encontro assim perdida em orações como uma marquesa andalusa; em seguida, não tardou a aborrecer-se, pois ela não acabava nunca”.

         Apontada também por Llosa em A Orgia Perpétua, a extensão da personalidade humana pode ser notada tanto nas ações no desenvolver do enredo, caso de León, quanto nos objetos que, dotados “de qualidade insuspeitadas”, “de recôndita psicologia”, “de uma capacidade de comunicar mensagens e expressões”, podem informar tanto mais dos personagens ou de dada situação específica.

Em madame Bovary, por obra da discrição, certas coisas, como a casquette de Charles são mais loquazes e transcendentes que seus donos, e nos revelam, melhor que as palavras e os atos daqueles, a personalidade do amo: sua classe social, sua situação econômica, seus costumes, suas aspirações, sua imaginação, seu sentido artístico, suas crenças.

         Para Llosa, o ápice da atitude igualitária do narrador para com homens e coisas se dá no episódio da carruagem, onde o objeto é descrito como um ser dotado de vontade e mobilidade próprias. “Ao longo de três páginas”, defende Llosa, “tem-se a impressão de que é a carruagem, não o cocheiro, quem toma as iniciativas. [...] No maciço veículo acaba-se por perceber uma chispa de inteligência, aquela que não brota, em nenhum momento, do pobre cocheiro, incapaz de decifrar o capricho de seus clientes”.
         Ao episódio, basicamente uma enumeração de ruas e lugares, das idas e voltas de um fiacre, um carro de aluguel, Llosa dá o epíteto: é “o mais imaginativo episódio erótico da literatura francesa”. Sim, o é, mas não somente pelas “coisas humanizadas” de Llosa, mas também por uma questão ilustrada em O Narrador, de Benjamin: a da “História Natural”.
         Lá, por meio do exemplo de uma passagem de Reencontro Inesperado, de Johaan Peter Hebel, Benjamin lembra que as histórias contadas pelo narrador remetem à história natural. Na narrativa, escrita no início do século XIX, um jovem aprendiz morre em um acidente nas minas de Falun, no fundo de uma galeria subterrânea. Sua noiva se mantém além da morte, e vive para, já bem velhinha, reconhecer o cadáver do noivo, preservado por uma razão qualquer. É Benjamin quem pergunta: “Como mostrar palpavelmente o longo tempo decorrido desde o início da história?”.

       Entrementes, a cidade de Lisboa foi destruída por um terremoto, e a guerra dos Sete Anos terminou, e o imperador Francisco I morreu, e a ordem dos jesuítas foi dissolvida, e a Polônia foi retalhada, e a imperatriz Maria Tereza morreu, e Struensee foi executado, a América se tornou independente, e a potência combinada da França e da Espanha não pôde conquistar Gibraltar. Os turcos prenderam o general Stein na grota dos veteranos, na Hungria, e o imperador José  morreu. O rei Gustavo da Suécia tomou a Finlândia dos russos, e a Revolução Francesa e as grandes guerras começaram, e o rei Leopoldo II faleceu também. Napoleão conquistou a Prússia, e os ingleses bombardearam Copenhagen, e os camponeses semeavam e ceifavam. [...] Mas, quando no ano de 1809 os mineiros de Falun...”

          E só então a noiva reconhece o cadáver. O cheiro da morrinha é semelhante a um outro, que sai do interior de uma certa carruagem, “mais fechada que um túmulo”, mas “balançada como um navio”:
        
[A carruagem] passou por Saint Sever, pelo cais dos Curandiers, pelo cais dos Meules, mais uma vez pela ponte, pela praça do Champs-de-Mars e atrás dos jardins do hospital, onde alguns velhos de casaco preto passeavam ao sol ao longo de um terraço coberto por heras verdes. Subiu novamente o bulevar Bouvreuil, percorreu o bulevar Cauchoise, em seguida todo o Mont-Riboudet até a encosta de Devill.
Voltou; e então,sem direção nem destino, ela vagabundeou ao acaso. Foi vista em Saint-Pol, em Lescure, no monte Gargan, na Rouge-Mare e na praça do Gaillard-Bois, na rua Maladrie, na rua Dinanderie, diante de Saint-Romain, Saint-Vivien, Saint-Maclou, Saint-Nicaise, – diante de Alfândega, – na Basse-Vieille-Tour, nas Tros-Pipes e no Cemitério Monumental. De tempos em tempos, [...].

         Antes de sua edição em livro, a publicação da passagem pela Revue de Paris fora censurada, a despeito de Flaubert. Segundo a leitura do processo movido pelo Ministério Público de Paris, o escritor exigiu que se aludisse à supressão por meio de uma nota de pé de página, o que, indiretamente, incitou com que os leitores continuassem o enredo como bem lhes parecia à própria lubricidade imaginária.
         Ora, curiosamente, é isso mesmo o que faz o narrador na versão integral do livro. Nas boas palavras de Llosa, “atinge o clímax erótico do romance por meio de um hiato, um escamoteio que consegue potencializar ao máximo o material ocultado pelo narrador”.
         A parte censurada, posteriormente anexada à versão definitiva do livro, apenas sugere, por meio do ponto de vista do cocheiro, e de uma interminável série de ruas e avenidas, um certo ambiente lascivo. Ou seja, o narrador não explicita o interior do veículo, mas sim expressa, de maneira INdireta, com peculiar recurso estilístico, o passeio realizado pelos amantes. Ao leitor, é apenas sugerido que seja ele o responsável pelas imagens ali narradas.
          Esse outro discurso indireto aproxima o narrador do leitor, não dos personagens. O leitor é então induzido a cumprir a narrativa de modo simultâneo à própria leitura, recorrendo assim, analogicamente, a si mesmo.
         A partir do momento em que a enumeração das ruas é prolongada, intercalada por interjeições afirmativas para que se dê continuidade, que se avance ao passeio – “Continue!”, “Vá em frente!”, León brada –, é dado ao leitor uma inflexão: é o leitor quem cria a narrativa, pois ali nada é descrito, senão aquilo que ocorre “lá”, no exterior da carruagem, e não “aqui”, no sentido mais amplo que esta palavra pode adquirir.
         Mas, não fossemos apresentados aos objetos personalizados, ao frágil caráter dos dois amantes, aos demais recursos que o narrador já se utilizara ao longo da obra, seria por meio das metáforas, para desgosto de Llosa, que encontraríamos motriz para a sua substancial leitura.
         Segundo Llosa, as metáforas “são demasiadas, muitas delas artificiosas, de um rebuscamento que destoa com a naturalidade perfeitamente fingida do estilo”. O escritor admite que elas são úteis por seu caráter imediatista, “porque a justeza da comparação faz visíveis e dá mais relevo às condições psicológicas, morais ou simbólicas do episódio”. Mas pondera, opinando que algumas metáforas são, por vezes, “de gosto duvidoso”, “fáceis”, como aquela que compara a felicidade matrimonial com a digestão.
         A final do passeio da carruagem, a mão de Emma – a mesma que escrevera uma cartinha ao amante, tencionada a cancelar o encontro, e não consumar o adultério – passa sob as pequenas cortinas de fazenda amarela, e lança pedaços de papel, que, como borboletas brancas num campo de trevos vermelhos floridos, se dispersam pela tarde.
         Terminamos este artigo com a seminal metáfora propiciada pelo narrador e, obviamente, tomando partido de Borges, para quem “as metáforas realmente boas são sempre as mesmas”. Pois o tempo é como uma estrada, a morte, como o sono, a vida...

João Paulo Bense é aluno de Letras da Universidade de São Paulo.